Luiz
Gustavo Rigon
Este
texto se debruça sobre um conjunto de desenhospinturas de Luiz
Gustavo Rigon, chamados pelo artista de pequenas estórias
e desenvolvidos em um período de três anos, em que o artista se
propôs a realizar o número de mil desenhospinturas. A proposta do
artista, bem como o seu trabalho, me faz pensar na beleza e na leveza
dos origamis japoneses, especificamente, nas cegonhas denominadas
TSURUS, que tal como a decisão de Rigon, ao se fazer mil, tem-se uma
oração pela paz no mundo.
TERRENOS
INUNDADOS
Uma
protonarrativa sobre as tensões de uma superfície em cor
Umbelina
Barreto
Pensar
em desenhos que emergem da água colocada sobre um suporte de papel
pode ser tão saboroso como pensar em campos de arroz de jasmim, de
onde emana um aroma indescritível. Pois são assim os desenhos de
Rigon: aromáticos e saborosos.
O
artista, de certa forma, vai “encontrando” os seus desenhos nos
alagadiços que provoca em um fértil campo de criação. E nós,
observadores atentos, vamos “colhendo os frutos” desse processo
que nos faz percorrer visualmente caminhos em que reconhecemos novos
mundos, novas narrativas em personagens que fazem parte da ação
registrada no tempo.
O
desenho vai sendo cultivado a partir das restrições impostas pela
acumulação da água, que Rigon joga sobre o suporte. Mas a tinta
também é jogada nas poças d’água, e isso faz com que o mineral
que define a cor sedimente e forme algumas estruturas que se espelham
em estruturas geológicas. É como uma mancha condensada no tempo. E,
é durante esse processo, que o grafite vai sendo utilizado, traçando
os limites da poça d’água gerada pela tensão superficial sobre a
superfície plana do papel, definindo o seu desenho como se fosse uma
protonarrativa sobre as tensões de uma superfície em cor.
Ao
olhar os desenhos de Rigon, fica-se sempre a procurar na memória um
universo de referência e, em um primeiro momento pode-se até pensar
no surrealismo, nos apontamentos automáticos de Max Ernst
construídos como uma história natural, ou ainda nos espaços
anamórficos de Salvador Dali, no início do século XX.
Mas,
se a memória aponta a pintura automática dos surrealistas, de qual
universo o artista está a falar hoje, no início do século XXI? A
criação dá-se no espaço da inundação do papel e o jogo da
narrativa nos desenhos de Rigon é tão forte que ao nos depararmos
com alguma figura já vamos adentrando no espaço como se
estivéssemos a entrar no universo narrado. Pode-se, por vezes, ver
uma figura alada a conversar com o gato de Alice no país das
maravilhas, pois os mundos ficcionais da fantasia também dialogam
com os desenhos de Rigon. No trabalho do artista, a criação de
novos mundos não passa despercebida, pois fica-se a tentar a ler a
história de onde saíram. Estão em suspensão ou se referem a
mundos suspensos? Ou talvez, dentre esses mundos, se possa pensar,
simplesmente, no mundo da linguagem.
Rigon
diz que poderia começar contando uma história: em um mundo em
extinção uma mulher-árvore vai soltando as sementes para uma nova
semeadura, que, como terrenos cultivados vão narrando novas
histórias, cruzando desenhos mínimos em espaços máximos que vão
sendo puxados das poças, ou seriam poços? Não, os desenhos de
Rigon não saem de poços, pois referem-se à linguagem e são como
as dobras da superfície. São como leves origamis em devaneios da
matéria que se mostram em caminhos percorridos, nos quais ele vai
deixando personagens que seguem sempre em procissão.
Nos
caminhos construídos por Rigon como desenhospinturas, a água gera
surpresas plástico-gráficas em reiterados mapeamentos, e a partir
desse espanto as personagens vão sendo criadas e vão sendo narradas
como em uma grande procissão. São seres surgidos da água e
petrificados na cor que vão sendo aprisionados pelo grafite que os
vai desenhando a todos, e, aqueles que não são desenhados, são,
simplesmente, sedimentados. Estaria aqui o automatismo de Rigon?
Estaria nesses restos e sobras acumulados ao acaso?
A
imaginação é interessante, mas, talvez ela precise ser motivada
por algum tipo de estrutura, aparentemente aleatória, que emerge de
superfícies naturais, ou mesmo construídas e que já sofreram a
ação do tempo. Sedimentações e estruturas geológicas desenham o
tempo. E, talvez seja esta a ideia de tempo a que Rigon se refere
quando menciona os restos e sobras que vão sendo acumulados ao longo
de nossa própria história. E o artista pode, simplesmente, coletar
e acumular na água as sobras de outros tempos, sem ser crítico e
sem censurar o que vai sendo levado de um momento a outro.
Em
que sentido, em que sentido, diria Alice, que não compreende que a
linguagem pode ter múltiplos sentidos. Mas Rigon diz: é como
fotografia de praia, em que eu vou fotografando os achados e quando
os acumulo, eu os inundo, mergulhando-os na água e voltando a
fotografar o conjunto submerso pela água, pois, novamente é a
superfície o que se tenciona e é exatamente aí onde busco novos
aromas e novos sabores.
Fico
pensando! Seria essa a forma de encontrar a maresia? Como pode-se
passar da sedimentação à erosão e vice-versa?
Os
desenhos de Luiz Gustavo Rigon nos deixam inundados, pois parece que
são parte de um universo que não tem fim e que se poderia percorrer
eternamente e, ainda assim, seríamos sempre surpreendidos em um ou
outro sentido.
Dezembro
de 2016.
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